O possível abuso de direito de voto na recuperação por credores majoritários

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A recuperação judicial é mecanismo instituído pela Lei nº 11.101/05 para trazer soluções ao cenário de endividamento em que uma organização econômica se encontre. O propósito central é a manutenção da ordem social e econômica que orbita — e frequentemente dependente — ao redor dessa organização; normalmente pessoas empresárias, mas precedentes judiciais recentes abrem a legitimidade ativa a outros sujeitos.

Assim, a razão existencial da recuperação judicial não é propriamente conferir benefícios cautelares à empresas em dificuldade financeira, mas garantir que mantenham-se as relações de emprego vigentes, a produtividade que frequentemente envolve uma comunidade, a continuidade de arrecadação tributária e reflexos econômicos indiretos. Esse objetivo central está estampado no artigo 47 da Lei nº 11.101/05. As cautelas — como suspensão de execuções, penhoras e arrecadação de bens por credores — acontecem como consequência para o alcance dos objetivos centrais.

A razão existencial da recuperação judicial também não é apenas providenciar meios de serem os credores adimplidos, embora o adimplemento seja condição fundamental. Esses meios, pura e simplesmente para esse propósito (adimplemento), são outros: execuções, ações de cobrança etc. A recuperação judicial alcança propósitos e interesses mais abrangentes. É inclusive a abrangência sua maior que o impõe sobre essas demandas individuais; vide o stay period e o poder do juízo recuperacional em sustar constrições de outros juízos.

Esse ambiente de interesse coletivo e manutenção-alcance de ordem social e econômica (ainda que em menor escala no caso de pequenas empresas) é o fundamento de todo o sistema e deve ser o ponto central de observação não apenas da atuação da empresa — ou empresas — em recuperação judicial, mas de todos os agentes econômicos direta e indiretamente ligados, inclusive o Fisco: apesar de não sujeito à recuperação judicial, não sem razão a Justiça tem conferido excepcionalmente a flexibilização da necessária regularidade fiscal e suspensão de bloqueios judiciais advindos de execuções fiscais, compreendendo que há um interesse coletivo maior envolvido.

O momento atual é de repensar novos horizontes do sistema: os credores sujeitos em recuperação judicial detêm apenas direitos — a livre prerrogativa de voto — ou igualmente estão sujeitos ao cenário de interesse coletivo? Em outras palavras, é possível que o voto de credores super majoritários inviabilizem a recuperação judicial seja flexibilizado e frequentemente desconsiderado diante de um contexto de aprovação dos demais e utilidade coletiva da preservação da organização empresária?

O novo parágrafo 6º do artigo 39 da Lei nº 11.101/05 (advindo da reforma de 2020) nos traz a clareza de que o credor em recuperação judicial conserva a plena liberdade sobre seu voto, somente sendo ele abusivo quanto usado para obter vantagem ilícita. A despeito da nova norma inserida na lei — e de ser ela autoevidente sobre as hipóteses em que uma livre manifestação de vontade é antijurídica —, a questão é mais complexa e já era tratada anteriormente no Direito em outros contextos.

No exercício da propriedade sobre ações de uma companhia, o acionista também exerce livremente seu voto — resultado de sua (idêntica) livre manifestação de vontade. Assim como o credor de vota sobre o que lhe é proposto em recuperação judicial, e o faz no seu interesse econômico, o acionista também produz a mesma espécie de vontade quando em assembleia lhe é proposta matéria que envolva seu interesse econômico como titular das ações correspondentes.

No entanto, tanto a norma escrita (artigo 115 da Lei nº 6.404/76) quanto a jurisprudência admitem que acionista controlador — aquele que detém posição jurídica de maior poder em relação aos seus demais semelhantes — deve conduzir este direito de voto de acordo com um interesse que comungue aquele que é próprio seu e aquele social (da companhia). Compreende-se, assim, que a posição que detém na companhia deve estar para mais do que apenas a sua individualidade; envolve um fim social (da companhia), toda uma coletividade e um propósito abrangente. O voto que é produzido contrariamente a isso, a despeito de livre e válido a princípio, é abusivo, apesar de não ser necessariamente endereçado a causar prejuízo a terceiros.

A abusividade do voto caso do acionista controlador, portanto, não está apenas na má-fé em causar prejuízo a terceiros, mas simplesmente em ser depositado sem levar em consideração interesse da companhia, que via de consequência está ligado à função social da sua atividade empresária.

Embora o credor majoritário em recuperação judicial não se situe no mesmo contexto do acionista controlador de companhias, existem questões relevantes que devem ser observadas: como tratamos acima, a recuperação judicial é mecanismo que busca essencialmente a preservação das relações necessárias à ordem social e econômica: empregabilidade, produtividade, continuidade da arrecadação tributária.

Em outras palavras, se o voto do credor majoritário é depositado de forma a inviabilizar certa recuperação judicial, a despeito de uma ampla maioria beneficiada e favorável, e apesar da significativa necessidade econômica e social de manutenção da atividade empresária, o que se tem é um contexto que deve abordar o debate de validade do hipotético voto, a despeito de ter sido depositado de forma livre e a princípio válida.

A validade a ser posteriormente avaliada não leva em consideração a conformidade jurídica da vontade manifestada: não está a se discutir se há antijuridicidade, se há interesse em causar prejuízo a terceiros. A questão está no cerne do que já foi consolidado nas relações societárias: o reconhecimento de que a atividade econômica e a preservação das relações jurídicas e sociais que orbitam uma organização detêm valor superior a simples satisfação da individualidade de um de seus envolvidos.

A redação do novo §6º do artigo 39 da Lei nº 11.101/05 não nos traz solução à celeuma do possível reconhecimento da abusividade do voto em recuperação judicial. Ali a redação se restringe ao universo da avaliação do voto destinado a causar ou não prejuízo a terceiros. A avaliação aqui não está sobre a presença ou ausência de boa-fé no depósito do voto, mas, sim, da relevância social da preservação da atividade econômica em comparação a satisfação individual de um dos envolvidos.

Por essa razão precedentes judiciais ao redor do Brasil vêm reconhecendo a possibilidade do juízo recuperacional declarar a abusividade do voto do credor majoritário que vota contra o plano de recuperação judicial e em dissonância a uma ampla maioria interessada. É o caso do Agravo de nº 2273167-08.2018.8.26.0000, no qual o Tribunal de Justiça de São Paulo compreendeu pelo reconhecimento de que o voto de um dos credores que inviabilizariam a recuperação judicial seria abusivo, o desconsiderando para fim de atingimento do quórum legal, destacando que o referido credor “… não opôs justificativa convincente à reprovação das condições de pagamento propostas pelas devedoras, não abusivas e acolhidas pela ampla maioria, tampouco se rendeu à negociação”  [1].

A compreensão pela possibilidade dos juízos recuperacionais avançarem sobre terrenos como esse abre a recuperação de empresas por via judicial para horizontes mais efetivos. Avaliando o Direito norte-americano, Francisco Cabrillo ilustra que “…em termos gerais, o direito falimentar pode ser definido como um conjunto de regas institucionaliza a ação coletiva na coleta de débitos” e que “…quando coletados os seus créditos através de um procedimento falimentar, os credores desenvolvem um jogo não-cooperativo, no qual cada indivíduo possui uma estratégia maximizadora, o que produz um resultado ineficiente” [2].

Assim, o cram down (a imposição forçada da recuperação) nos Estados Unidos da América busca resultados nesse sentido, pelo qual o juízo recuperacional impõe a renegociação judicial a revelia de credores majoritários que votam individualmente contra, mas desde que beneficente a um grande grupo de credores e terceiros indiretamente envolvidos.

O desafio, naturalmente, estará em se adotar num futuro próximo parâmetros consolidados e uniformizados para critérios que devam ser observados para que o reconhecimento de certos votos como abusivos e os desconsidere.

Em todo caso, as prescrições excessivamente objetivas do artigo 58º, §1º, da Lei nº 11.101/05 (o cram down brasileiro), já se mostraram ineficientes e incapazes de atender ao objetivo do instituto, o que tem motivado a magistrados(as) de compreensão mais sistêmica a buscarem princípios e valores jurídicos aplicáveis para flexibilizar e norma e produzir o melhor Direito possível e melhor justificado não apenas a partir do discurso que realize ele próprio — operador —, mas também a partir de todos os discursos jurídicos possíveis naquele momento, como bem defendeu Ronald Dworkin [3].

[1] (TJSP – AI: 22731670820188260000 SP 2273167-08.2018.8.26.0000, Relator: Araldo Telles, Data de Julgamento: 13/07/2020, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 14/07/2020.)

[2] CABRILLO, Francisco et. al. Bankruptcy Procedures. Encyclopedia of Law and Economics. Disponível em https://reference.findlaw.com/lawandeconomics/7800-bankruptcy-proceedings.pdf . p. 03.

[3] DWORKING, Ronaldo. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.